A violência começa na mente
O que motiva alguém a fazer o mal para outra pessoa? Um cérebro diferente, um DNA criminoso, problemas hormonais, pais ausentes.
Enquanto aguardava minha vez de comprar o ingresso para o cinema, um casal começou a discutir. As acusações foram aumentando, assim como o tom das vozes. Como todos na fila, disfarcei e fingi não estar vendo aquela cena. Mas o que eram vozes alteradas transformaram-se em berros, até que o rapaz atingiu a garota com um tapa. A confusão aumentou. Desisti de assistir ao filme. Nem era mais necessário: já tinha recebido uma overdose de emoção para o dia. No caminho de volta, uma pergunta me inquietava: o que faz alguém brigar assim? De onde vem toda essa agressividade?
Obviamente, aquele casal não é uma exceção. Todos os dias, cenas de violência invadem a tela da tevê, passeiam pelas ondas do rádio ou desfilam pelas páginas dos jornais e das revistas. Nas metrópoles, elas já se tornaram corriqueiras: acontecem diariamente na porta de casa, no interior dos condomínios e das escolas, nas ruas, no trânsito, nos semáforos, nos estádios... Brigas, assaltos, assassinatos, atropelamentos, crimes. Enfim, retratos da perversidade praticada pelo ser humano.
Tão antiga quanto a própria humanidade, a agressividade também frequenta o universo bíblico. Quem não se lembra da história de Caim e Abel? Na Bíblia, Caim invejava o irmão e acabou por assassiná-lo. Mas não importa o lugar, nem quem ou como a violência é exercida, a verdade é que qualquer um de nós pode ter gestos de extrema agressividade, pois eles fazem parte da natureza humana. Em certos casos, a violência é resultado da força e do físico também. Afinal, só briga e é valentão quem pode, não é mesmo?
Engana-se quem responsabiliza os distúrbios psicológicos pelo fato de nem sempre conseguirmos ter o controle sobre os nossos instintos mais brutais. Ao contrário: muitos psiquiatras asseguram que mesmo as pessoas consideradas “normais” podem praticar um assassinato. Como? Por quê? Primeiramente, porque a agressividade é uma herança de nossos instintos mais primitivos, quando tínhamos de nos defender de toda espécie de perigo, das intempéries climáticas a animais de grande porte. Assim sendo, é uma parte importantíssima de cada um de nós. Afinal, é a agressividade que permite responder à altura e no mesmo tom a uma pessoa que nos insulta – e, nesse caso, é chamada de atitude defensiva.
DISSIMULAÇÃO As pessoas que sofrem de transtorno da personalidade antissocial costumam importunar, desrespeitar, mentir e manipular os outros, a fim de obter vantagens pessoais.
A personalidade antissocial
Também conhecido como psicopatia ou sociopatia, o transtorno da personalidade antissocial apresenta-se como um padrão invasivo de desrespeito e violação dos direitos dos outros, que começa na infância ou no início da adolescência e prossegue na idade adulta. Enquanto algumas pessoas conseguem administrar bem os conflitos, outras têm uma visão distorcida da realidade e, assim, são levadas a canalizar a violência. É o caso de quem sofre de transtorno da personalidade antissocial. Centradas apenas em si mesmas, essas pessoas desdenham os outros e querem redimir a carência, a falta de amor (real ou imaginária) do passado. Em geral, elas não se adaptam às normas sociais e podem realizar repetidos atos que constituem motivo de detenção, como destruir propriedade alheia, roubar, importunar e desrespeitar os desejos, os direitos ou sentimentos alheios. Também enganam ou manipulam os outros, a fim de obter vantagens pessoais ou prazer. “Podem ainda mentir repetidamente, usar nomes falsos, ludibriar ou fingir”, explica a psicóloga Joana Patrícia Dias. Como ocorre? Se uma criança é negligenciada pela família, não aprende a avaliar adequadamente as consequências das suas ações e passa a cometer gestos atrozes sem sentimento de culpa. Em certos casos, se ela percebe que a mãe está ausente e reage ao distanciamento materno para se defender, guardando distância dos semelhantes, isso na prática significa que passa a desrespeitar a lei e sucessivamente os outros.
CAMOCIM INFORMADOS
O BULLYING COMPREENDE TODAS AS FORMAS DE ATITUDES AGRESSIVAS ADOTADAS POR UM OU MAIS ESTUDANTES CONTRA OUTRO(S)
Em alguns casos, a agressividade deixa de ser apenas um mecanismo natural de defesa, passando a ser uma bomba-relógio, prestes a explodir. Fundador da moderna etologia (o estudo do comportamento animal), o zoólogo austríaco Konrad Lorenz (1903-1989) afirma que quando a agressividade vem antes do amor, ela é um desvio: “Esse tipo de agressividade é uma violência em si mesma: é a mola que impulsiona certos homens a cometer massacres ou genocídios.”
Lorenz é autor de dois livros sobre o tema: Sobre a agressão (1963) e Por trás do espelho: uma pesquisa por uma história natural do conhecimento humano (1973). No primeiro, ressalta que nos animais a agressividade tem um papel positivo para a sobrevivência da espécie, como o afastamento de competidores e a manutenção do território. “Também no homem a agressividade poderia ser orientada para comportamentos socialmente úteis”, opina o etólogo. Na segunda obra, ele especula sobre a natureza do pensamento e da inteligência humana e seu poder de sobrepujar as limitações reveladas por seus estudos, argumentando ainda que a luta e a guerra no homem têm uma base inata, mas que isso pode ser modificado. Por suas descobertas, Lorenz recebeu o Prêmio Nobel de Fisiologia em 1973.
Os encrenqueiros
Nas escolas, eles são conhecidos como praticantes do bullying (do inglês, ameaçar, intimidar). São crianças e adolescentes que praticam a violência física e psicológica entre seus colegas. Hoje disseminado também na internet (cyberbullying), o bullying compreende todas as formas de atitudes agressivas, intencionais e repetidas, que ocorrem sem motivação evidente, adotadas por um ou mais estudantes contra outro(s), causando dor e angústia, e executadas dentro de uma relação desigual de poder. Portanto, os atos repetidos entre iguais e o desequilíbrio de poder são as características essenciais, que tornam possível a intimidação da vítima. “Nos rapazes, é mais fácil que certas emoções se traduzam em atos violentos”, diz o psicanalista Antonino Ferro. Esses jovens são influenciados por vários fatores: menos controle e mais coesão. Nas “manadas humanas”, reproduz-se um mecanismo de raiva animal (lembrem-se das torcidas organizadas). O assunto é sério: basta ver que uma pesquisa sobre bullying, realizada na Grã-Bretanha, registra que 37% dos alunos do 1º grau e 10% do 2º grau admitem ter sofrido bullying uma vez por semana, pelo menos. Também no Brasil, um estudo da Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia), envolvendo 5.875 estudantes da 5ª à 8ª séries de 11 escolas da cidade do Rio de Janeiro, revelou que 40,5% deles admitiram ter estado diretamente envolvidos em atos de bullying em 2002, sendo 16,9% alvos, 10,9% alvos/autores e 12,7% autores de bullying. Normalmente, os meninos estão mais envolvidos com o bullying, tanto como autores quanto como alvos. Já entre as meninas, embora ocorra com menor frequência, o bullying se caracteriza, principalmente, como prática de exclusão ou difamação. Mas o que fazer? Como saber se uma criança praticará bullying? Melhor certificar-se de educá-la bem e observar até que ponto os seus acessos de raiva contra as coisas e as pessoas são sérios, acompanhando muito de perto o desenvolvimento de sua personalidade.
Para muitas teorias sociológicas, a agressividade destrutiva é aprendida em nosso meio social – a sociedade na qual vivemos influencia nosso comportamento, afirmam. Por sua vez, Freud diz que também as pessoas muito místicas e pacíficas podem esconder a crueldade e o sadismo infantis. Embora inerente à natureza humana, nem todo mundo exprime a violência do mesmo modo. Os inuits, do Ártico, por exemplo, não agridem, mas isolam o indivíduo. Segundo descreve o antropólogo Andrea Drusine, os arapesh da Nova Guiné são citados como um exemplo de povo pacífico. Se dois rapazes brigam, são separados por um adulto e treinados para descarregar a ira não em um semelhante, mas sobre as coisas.
Também os índios hopis, da América do Norte, reprimem a agressividade física e não gostam de competições. Ao contrário, aprendem a sorrir até mesmo para os inimigos. Em compensação, têm uma língua afiada como uma navalha envenenada. Outras tribos do continente, como os cheyennes, eliminavam sua agressividade golpeando duramente os inimigos com as mãos. Quando nos encontramos em perigo (por exemplo, diante de uma cobra), a imagem chega ao tálamo, uma área do cérebro de onde é levada ao córtex visual e à amídala, glândula que envia a resposta de defesa (aumento do batimento cardíaco, adrenalina).
NOS ESTÁDIOS A polícia enfrenta as torcidas organizadas à custa de sua própria vida.
Emil Cocarro, neurologista da Universidade de Chicago (EUA), acredita que a bioquímica cerebral de alguns indivíduos irritáveis é programada pela ira. As pessoas que apresentam uma carência do neurotransmissor serotonina são mais sujeitas à cólera. “É preciso imaginar”, escreve Drusini, “que, quando qualquer pessoa nos faz uma desfeita, algumas estruturas de nosso cérebro são estimuladas a reagir de maneira agressiva”. Então, o córtex cerebral media e faz uma avaliação, perguntando: você quer dar um soco naquele rapaz? Essa ponderação nos fornece um tempo para raciocinar, mas, se o sistema da serotonina não funciona, o impulso não é freado e o córtex frontal não intervém a tempo. Resultado: acaba-se partindo para a agressão.
Os novos gladiadores
Segundo o psicólogo Jeffrey H. Goldstein, “as pessoas que assistem a um esporte agressivo tendem a ficar agressivas”. Em uma espécie de busca de identificação, no estádio a violência é quase contagiosa. E isso não é só um fato recente: no ano 59, uma violenta luta nos jogos entre gladiadores das cidades italianas de Pompeia e de Nocera acabou em tumulto generalizado das duas torcidas, fazendo o anfiteatro de Pompeia, palco das lutas, ficar fechado por dez anos, segundo o que descreve um episódio narrado pelo historiador romano Cornélio Tácito (56-120). Futebol “hooligânico” (dos hooligans, como são chamados os ingleses que integram algumas das mais violentas torcidas organizadas de futebol do mundo) é o nome que a literatura dá a um certo tipo de fanatismo futebolístico. Não parece, mas esse fanatismo tem uma estrutura muito organizada, com hierarquias precisas. A “manada humana” fornece uma identidade: o chefe, o comandante no campo e outros. Mas atrás de toda essa estrutura bem organizada escondem-se personalidades fracas. O inimigo se torna o outro; assim, a ordem é usar a força, como num campo de batalha. O mesmo acontece com outras equipes: encaram o time adversário como o inimigo, enfrentando-o como se estivessem em uma guerra. Em outras ocasiões, o próprio evento é violento, como é o caso do Palio de Siena, uma corrida de cavalos que acontece na cidade italiana de Siena desde o século 17, em honra a Nossa Senhora. Dezessete bairros participam dessa corrida e seus habitantes desfilam pela Piazza del Campo com trajes tradicionais e bandeiras, mas a corrida em si é feita somente por dez cavalos de três bairros, que são escolhidos por sorteio. Cada animal tem suas cores e o hino. Ganha o cavalo que chegar primeiro, após três voltas ao redor da praça, mesmo que o jóquei já tenha caído.
SER UM POUCO AGRESSIVO FAZ BEM. ATÉ PORQUE A AGRESSIVIDADE É UMA RESPOSTA HUMANA A UMA DEMANDA DE DEFESA NATURAL DE TERRITÓRIO
Em 1993, Han Brunner, geneticista da Universidade de Nimega (Holanda), publicou uma teoria afirmando que o comportamento agressivo é uma herança genética, que ocorre devido a uma mutação do gene pela enzima monoamino oxidase (MAO). Genes à parte, não é fácil manter o equilíbrio dos neurotransmissores cerebrais, pois são muitas as interferências. Mesmo assim, o cérebro geralmente consegue fazer isso. Às vezes, porém, a balança pende desproporcionalmente para um dos lados e os efeitos são palpáveis. No caso da serotonina, a deficiência está ligada à depressão e à falta de motivação. Já o seu excesso leva a outro extremo: a agressividade. Lembrese: no ser humano, o comportamento agressivo sempre anda ao lado do excesso de serotonina e de noradrenalina no cérebro.
Sobre a origem genética da violência, a comunidade científica é cética. Ser um pouco agressivo faz bem. Até porque é uma resposta a uma demanda de defesa natural do território. Mas apenas se falarmos da raiva construtiva, aquela que serve para levar para casa um resultado positivo. O resto é o resto. Os homens são mais agressivos que as mulheres, pois apresentam níveis mais altos de testosterona (hormônio masculino), que é a base de um comportamento irracional. Eis por que as mulheres mais raramente erguem a mão: não é porque são menos fortes fisicamente, mas porque são menos agressivas. Existe ainda quem não sabe ficar enfurecido e acha melhor usar a chamada “inteligência emocional”: não responder às provocações e manter a calma em vez de utilizar modos menos eficazes para não perder o controle. Um exemplo: se o adversário é um ótimo pai, mas um péssimo chefe, melhor conversar sobre seu filho. Com calma e muito devagar, ele acabará confiando em você. Considerando-se a incapacidade dele, você calmamente o ajudará a entender questões mais delicadas. E, desse jeito, você obterá melhores resulados.
Homens X Mulheres
Inveja e dInheIro: muitas vezes, a violência entre um casal nasce fundamentalmente por estes dois motivos. E o quem vem a seguir é sempre a mesma coisa.
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