quarta-feira, 26 de junho de 2013

DE COMO UM MUJIQUE ALIMENTOU DOIS 

BUROCRATAS



burocratas
MICHAEL SALTYKOV
(1826-1889 – Rússia)
Sua estréia em 1848, com o romance satírico Contradição, lhe custou um exílio de oito anos. Qualificado por um crítico de Moscou como “o mais autêntico de todos os russos”, publicou vários livros, sempre com uma ironia acre em relação aos poderosos, como neste conto sempre antologizado, no qual, ao mesmo tempo em que escreve uma narrativa de puro humor, mostra-se implacável com a burocracia de seu país.

Era uma vez – isso já faz muito tempo – dois funcionários públicos. Ambos tinham a cabeça oca, assim se descobriram eles um dia, sem mais nem menos, transportados como que por um tapete mágico para uma ilha deserta.
A vida toda eles passaram numa repartição pública, onde eram guardados os relatórios do governo; nela nasceram, viveram e envelheceram, e conseqüentemente não tinham o mínimo conhecimento de nada que não fosse relativo ao departamento; e as únicas palavras que eles conheciam eram: “Com protestos da mais alta estima e consideração, subscrevo-me, vosso humilde servidor…”
Mas a repartição foi abolida e, como já não precisavam mais dos serviços dos dois burocratas, deram-lhes a chamada liberdade. Assim os dois funcionários aposentados emigraram para casa, à rua Podyacheskaya, em São Petersburgo. Cada qual obtivera casa própria, alimentação e pensão.
Acordando subitamente numa ilha desabitada, perceberam-se acordando sob as mesmas cobertas. A princípio, naturalmente, não conseguiram compreender o que, afinal, lhes tinha acontecido, e falaram entre si como se nada de extraordinário lhes houvesse ocorrido.
- Que sonho estranho tive esta noite, Vossa Excelência – disse um funcionário. – Parecia que estávamos numa ilha deserta.
Foi só pronunciar essas palavras e ficou em pé num pulo. O outro funcionário também saiu da cama num salto.
Meu Deus do céu, o que está acontecendo!? Onde estamos? – gritaram ambos, espantadíssimos.
Apalparam-se para se convencer que não estavam mais sonhando e, a duras convenceram-se da triste realidade.
Diante deles, o oceano estendia-se e, por trás, jazia um bom bocado de terra, e além dela, via-se novamente o oceano. Caíram no choro – pela primeira vez, desde que a repartição fora fechada.
Olharam-se mutuamente e perceberam que não vestiam nada além do que uma camisola e uma comenda pendurada no pescoço.
- Deveríamos agora tomar nosso desjejum – observou um dos burocratas. Voltou então a pensar na situação-limite em que se encontravam e rompeu em prantos pela segunda vez.
- E agora, o que vamos fazer? – soluçava. – Mesmo que pudéssemos escrever um relatório, de que isso adiantaria?
- Sabeis de uma coisa, Vossa Excelência – respondeu o outro burocrata -, vós ides para Leste e eu para Oeste. Ao entardecer estaremos de volta para onde nos encontramos, e assim talvez tenhamos encontrado algo para comer.
Começaram a conjeturar onde era o Leste e onde era o Oeste. Lembram-se o que o chefe do departamento uma vez lhes dissera: “Se quiserdes saber onde fica o Leste, voltai-vos de frente para o Norte e tereis o Leste à direita”. Mas ao procurar o Norte, eles voltaram-se para a direita, depois para a esquerda e acabaram dando voltas para todos os lados. Tendo passado a vida toda no arquivo do governo, todos seus esforços foram em vão.
- Sabe o que é que eu acho, Excelência? Acho que o melhor a fazer será vós seguirdes pela direita e eu pela esquerda – disse o funcionário que havia trabalhado apenas no arquivo do governo, como também fora professor de caligrafia na Escola de Reservas e por isso era um pouco mais inteligente do que o outro.
Dito e feito. Um funcionário foi pela direita. Acabou encontrando árvores com todos os tipos de frutas. De muito bom grado teria apanhado uma boa maçã, mas elas pendiam de tão alto que ele teria de trepar na árvore. Tentou subir, mas em vão. Tudo o que conseguiu foi rasgar sua camisola de dormir. Em seguida topou com um rio. Que estava coalhado de peixes.
- Não seria maravilhoso se tivéssemos esta peixalhada toda lá na rua Podyacheskaya? – pensou, com água na boca. Depois entrou num bosque e avistou perdizes, galinholas e lebres.
- Deus meu, que abundância de comida! – gritou ele. E a fome só aumentava.
Mas ele acabou voltando para o lugar de antes de mãos vazias. Encontrou com o outro funcionário já à sua espera.
- Então, Excelência, como foi? Encontrou alguma coisa?
- Nada, a não ser um jornal velho, uma Gazeta de Moscou antiga, apenas isso.
Os burocratas deitaram novamente para dormir, mas seus estômagos vazios não lhes deram descanso. Parte do sono foi tomado pela idéia fixa de quem estaria naquele momento gozando das suas pensões e pelo pensamento das frutas, peixes perdizes, galinholas e lebres que tinham visto durante o dia.
- O alimento humano, na sua forma original, voa, nada e cresce em árvores. Quem teria imaginado isso, hein, Excelência? – perguntou um deles.
- É verdade – admitiu o outro. – Eu também devo confessar que imaginava que as bolachas que comemos pela manhã vêm ao mundo tal e qual aparecem nas nossas mesas.
- Daí podemos deduzir que, se queremos comer um faisão, é preciso primeiro apanhá-lo, depois matá-lo, depená-lo e assá-lo. Mas como é que se faz isso tudo?
- Isso mesmo, como é que se faz … ? – repetiu o outro.
Caíram em silêncio e mais uma vez tentaram adormecer – mas a fome afugentava o sono. Diante dos seus olhos desfilavam bandos de faisões, patos, leitões e todos tão tenros, tão suculentos e tão deliciosamente guarnecidos de azeitonas, rodelas de limão e picles!
- Acho que era capaz de devorar minhas botas agora – disse um deles.
- As luvas também não seriam nada mal, especialmente se forem macias – disse o outro funcionário.
Os dois se entreolharam fixamente. Em seus olhares chamejava um fogo devorador, dentes batendo como castanholas e um ronco surdo lhes saía do peito. Lentamente avançavam um em direção ao outro e de repente romperam num puro frenesi. Houve gritos e gemidos, farrapos voaram e o funcionário que fora professor de caligrafia arrancou um bocado de fita da medalha do outro e engoliu-a. Só pararam quando viram sangue.
- Ai, que Deus nos ajude! – gritaram ao mesmo tempo. – Com certeza não vamos nos entredevorar. Como podemos chegar a esse ponto? Que gênio do mal estará se divertindo a nossa custa?
- Precisamos, custe o que custar, nos entretermos para passar o tempo; do contrário haverá aqui um assassinato – disse um deles.
- Começai vós, Excelência – falou o outro.
Vossa Excelência saberia explicar por que o sol primeiro se levanta e depois desce? Por que não seria o contrário?
- Não é que Vossa Excelência é engraçado? Vós vos levantai cedo, depois seguis até o vosso trabalho e à noite vós vos deitai para dormir.
- Mas por que não se pode conceber o contrário, quer dizer, que uma pessoa vai para a cama, vê toda a sorte de figuras nos sonhos, e só então se levanta?
- Bem, sim, com certeza. Mas quando eu ainda era um funcionário, sempre pensava da seguinte forma: “Agora é madrugada, logo será dia, depois comerei e finalmente chegará a hora de ir para a cama.”
A palavra “comer” lembrou-lhes o que acontecera durante aquele dia e ambos ficaram melancólicos, a ponto da conversação chegar a um impasse.
- Um médico um dia me disse que os seres humanos podem se sustentar muito tempo com os sucos do próprio organismo – um deles retomou a conversa.
- O que é que isso significa?
- É muito simples. Vede Vossa Excelência, os sucos do próprio organismo originam outros sucos e assim por diante, até que todos os sucos se consomem.
- E daí, o que acontece?
- Aí então o organismo precisa ingerir alimento.
- Que diabos!
Não importava qual fosse o tópico que eles escolhessem, a conversa invariavelmente caía no assunto de comida; o que só aumentava mais e mais o apetite dos dois.
Por isso decidiram deixar de falar e, lembrando-se da Gazeta de Moscou que um deles havia encontrado, pegaram o velho jornal e começaram a lê-lo ansiosamente:
O BANQUETE OFERECIDO PELO PREFEITO
“A mesa exata posta para cem pessoas. Sua magnificência excedeu todas as expectativas. As mais remotas províncias fizeram-se representar na festa dos deuses pelos presentes mais caros. O esturjão dourado de Sheksna e o faisão prateado dos bosques caucásicos encontraram-se com morangos tão raros num inverno, como agora, está avançado…”
- Que diabo! Pelo amor de Deus, pára de ler, Excelência! Não será possível encontrar qualquer outra notícia? – gritou o outro burocrata, desesperado. E arrancou o jornal das mãos do colega e pôs-se a ler noutra coluna:
“Nosso correspondente em Tula comunica que ontem foi encontrado no Upa um esturjão (evento que nem os mais antigos residentes do lugar recordam ter acontecido e tanto mais notável pelo fato de terem reconhecido o antigo capitão de polícia nesse esturjão). Aproveitando a ocasião, o clube local deu um grande banquete. Serviu-se o prato principal numa grande travessa de madeira, com guarnições de picles avinagrados. Na boca, tinha um molho de salsa. O doutor P…, que fez as saudações, providenciou para que todos provassem um pedaço do esturjão. Os molhos que o acompanharam eram extraordinariamente variados e delicados…”
- Permiti-me, Excelência, mas me parece que não escolhestes bem a matéria – interrompeu o primeiro burocrata, que tornou a agarrar a gazeta e principiou a ler:
“Um dos mais velhos habitantes de Viatka descobriu uma nova e original receita para sopa de peixe. Pegue-se um bacalhau vivo (lota Vulgaris) e bate-se nele com uma vara, até que o fígado fique bem inchado de raiva…”
As cabeças dos burocratas penderam de puro desconsolo. Em qualquer lugar que seus olhos pousassem havia sempre alguma coisa relacionada com comida. Até mesmo seus próprios pensamentos tornaram-se fatais. Por mais que tentassem afastar da cabeça suculentos filés e derivados era inútil. A fantasia voltava invariavelmente, com irresistível força, ao que eles, com tanta pena, queriam evitar.
De repente, uma inspiração acometeu o funcionário que já havia sido professor de caligrafia:
- Já sei! – gritou, eufórico. – Que me dizeis, Excelência, que me dizeis de procurarmos um mujique?
- Um mujique, Excelência? Que espécie de mujique?
- Ora, um mujique qualquer. Um mujique como todos os outros. Ele haverá de nos arranjar bolinhos de carne e também haverá de pegar as perdizes e os peixes para nós.
- Hum… um mujique. Mas onde é que vamos desenterrar um mujique, se não há mujiques por estas bandas?
- Por que não haveria de haver um mujique nesta ilha? Há mujiques por todo lado. O que é preciso é procurar. Com toda a certeza haverá algum mujique escondido por aqui, fugindo do trabalho.
A idéia alegrou tanto os burocratas que eles se levantaram na mesma hora e saíram em busca de um mujique.
Durante muito tempo caminharam a esmo pela ilha sem nenhum resultado, até que finalmente um cheiro concentrado de pão preto e pele velha de carneiro chegou-lhes às narinas e guiou-os na direção certa. Debaixo de uma árvore encontraram um mujique colossal deitado em sono profundo com as mãos servindo de travesseiro. Era claro que para fugir da sua obrigação de trabalhar ele havia fugido para a ilha. A indignação dos dois burocratas não tinha limites.
- O quê! Dormindo aqui, seu preguiçoso de marca maior! – ralharam com ele. – Está pouco ligando se aqui tem dois funcionários quase morrendo de fome. Vamos, levanta-te vagabundo, vai trabalhar!
O mujique se levantou e olhou aqueles dois severos cavalheiros diante dele. Seu primeiro impulso foi o de fugir, mas os funcionários rapidamente o seguraram.
O mujique precisou se submeter ao seu destino. E seu destino era trabalhar.
Primeiro ele trepou nas árvores e colheu várias dúzias de ótimas maçãs para os funcionários. Guardou uma maçã machucada para si. Depois ele cavou a terra e encontrou batatas. A seguir, ele começou uma fogueira friccionando dois pedaços de madeira. Com seus próprios cabelos, ele inventou uma armadilha e capturou perdizes. Na pequena fogueira, a esta altura bem acesa, ele cozinhou tanto tipo variado de comida que levantaram uma dúvida na cabeça dos burocratas, se deveriam dar o que sobrava dela ao mujique.
Graças ao esforço do servo, eles se rejubilaram cordialmente. Já tinham esquecido como, no dia anterior, por pouco não haviam morrido de fome, e tudo o que pensavam agora era: “Como é bom ser um burocrata. A um burocrata do Governo nunca acontecerá nada de mal.”
- Satisfeitos, Excelências? – perguntou o preguiçoso mujique.
- Sim, estamos contentes com sua habilidade – respondeu um dos funcionários.
- Então tenho vossa permissão para descansar um pouco?
- Podes repousar, mas antes faze uma corda bem forte.
O mujique reuniu talos de cânhamo, jogou-os nágua, bateu-os contra o chão e quebrou-os; ao cair da tarde uma boa e sólida corda estava pronta. Os funcionários pegaram a corda e amarraram o mujique a uma árvore, para que ele não tentasse fugir. Depois, deitaram-se para dormir.
Assim se passaram dia após dia e o mujique se tornara tão habilidoso que era capaz de fazer sopa para os funcionários só com as mãos soltas. Os dois ficaram gordos, bem alimentados e felizes. Contentes sobretudo pelo fato de não gastarem dinheiro algum, enquanto suas pensões iam se acumulando em São Petersburgo.
- Qual é a vossa opinião, Excelência? – disse um deles ao outro, depois do desjejum de uma certa manhã. – A História da Torre de Babel é verdadeira? Ou julgais tratar-se apenas de uma alegoria?
- Em absoluto, Excelência. Acho que de fato aconteceu. Que outra explicação poderia haver para a existência de tantas línguas sobre a Terra?
- Então o Dilúvio também aconteceu?
- Com certeza: caso contrário, como poderia explicar a existência dos animais antediluvianos? Depois, a Gazeta de Moscou diz…
Procuraram o velho exemplar do jornal, sentaram-se à sombra e leram a folha toda, do começo ao fim. Leram a respeito das festividades de Moscou, Tula, Penza e Rizan e, estranhamente, não se sentiram incomodados com a descrição de iguarias servidas. Não se sabe quanto tempo poderia ter durado aquela vida. Mas um dia os funcionários começaram a se aborrecer de tudo. Com freqüência pensavam em seus cozinheiros de São Petersburgo e, em silêncio, derramavam algumas lágrimas.
- Estou pensando em como estará agora a nossa Podyacheskaya, Excelência falou um deles.
- Não me façais lembrar disso, Excelência. Morro de saudades…
- Aqui está muito bom. Nada a reclamar deste lugar, mas os cordeirinhos não podem se separar da ovelha. E é a falta que faz também os belos uniformes dos nossos empregados…
- Sim, de fato um uniforme de quarta classe não é brincadeira. Bastam os bordados de ouro para deixar uma pessoa tonta.
Começaram então a importunar o mujique para que ele encontrasse alguma maneira de voltarem para a rua Podyacheskaya, e por estranho que pareça o mujique sabia onde ficava a rua Podyacheskaya. Uma vez ele bebera cerveja e hidromel naquela rua e, como diz o ditado, tudo lhe escorrera pela barba sem que nada lhe ficasse na boca.
Os funcionários se alegraram e disseram:
- Somos funcionários da rua Podyacheskaya!
- E eu sou um daqueles homens que se sentam num andaime pendurado por corda dos telhados e pintam as paredes do lado de fora. Sou dos que engatinham pelos telhados, como moscas. É isso que eu sou – replicou o mujique.
O mujique discursava agora, larga e profundamente, como dar prazer aos funcionários, os preguiçosos, que tão bom tinham sido com ele e não tinham zombado do seu trabalho. E acabou por conseguir construir um navio. Não era um navio de verdade, mas uma embarcação que podia levá-los através do oceano até a rua Podyacheskaya.
- Olha aí, cuidado, agora, não venha nos afogar, seu cachorro – disseram os funcionários, quando viram a jangada subindo e descendo por sobre as vagas.
- Não tenhais medo. Nós, mujiques, estamos acostumados com o mar – replicou ele, fazendo todos os preparativos para a viagem. Reuniu penas de cisne e fez um colchão para os dois funcionários, depois se persignou e remou, afastando-se da praia.
Como sentiram medo os dois na travessia, quanto enjôo durante as tempestades e como destrataram o pobre mujique por sua preguiça, tudo isso é coisa que não se pode dizer nem descrever. O mujique, no entanto, continuava sempre remando e alimentava os funcionários com arenque. Finalmente, chegaram à vista da querida e velha mãe … o rio Neva. Logo entraram na grande rua Podyacheskaya. Quando os cozinheiros viram seus patrões bem alimentados, tão gordos e contentes, fizeram uma festa. Os
burocratas comeram biscoitos e tomaram café, depois vestiram os uniformes e rumaram para o departamento de pensões. Quanto dinheiro receberam ali é outra coisa que não se pode dizer ou descrever. Nem o mujique foi esquecido. Os funcionários mandaram-lhe cinco tostões e uma garrafa de vodka.
Agora, divirta-se, mujique!

CAMOCIM INFORMADOS 

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